quarta-feira, 15 de outubro de 2008

São Luís do maranhão - versos e prosa
Os olhos azuis e mareados de dona Vitória Peres Castro, São Luís do Maranhão é um sobrado de azulejos com 22 janelas e duas vistas. Ali, entre escombros do teto e incertezas do piso, a mulher, já velha e curva, tem a memória algemada às ruínas da casa.
Jamais sai de lá. Aos 83 anos, Vitória (foto)mesmo nome da santa padroeira da cidadeteme que lhe roubem a propriedade, no passado morada luxuosa, agora arremedo de abrigo. Vive trancada por fora, por cadeado aberto apenas uma vez por dia pela moça que lhe deixa o bandeco ou marmita, como é chamada pelos maranhenses.
Há três anos Vitória não sai à rua. Na última vez em que atravessou a porta de madeira, foi até o poste mais próximo, deixou uma imagem do Menino Jesus de Praga e retornou aos escombros do que chama palacetefoi erguido no século XIX quando São Luís já entrara em decadência.
Cem anos antes, nos tempos da colônia, a cidade que dona Vitória apelidou de. meu mundo.chegou a ser terceira maior do Brasil. Cresceu de tamanho e importância porque o primeiro-ministro português Marques de Pombal criou ali, em 1755, a Companhia Geral de Comércio do Grão Pará-Maranhão.
Tinha o monopólio da venda do algodão e do açúcar, principais produtos no mercado mundial da época. A ilha de São Luís prosperou e ganhou calçamento de pedras de granitochamadas de calcetas que eram carregadas por escravos e presos. Sob a casa de dona Vitória, fizeram a escadaria Vira-Mundo, que era tão enorme quanto irregular.
Nas redondezas, dona Vitória tem fama de louca. Quando está brava derrama baldes d. água em quem passa e proíbe a criada de entrar. Pega a comida por uma cordinha amarrada aos ferros da sacada. Quando está alegre, é dali que a mulher de cabelos longos e brancos se debruça sobre o parapeito e aprecia São Luís.
Enxerga uma cidade que resume o Brasil e ganhou status de Patrimônio Histórico da Humanidade, tombada ano passado pela Unesco. Resume o passado mestiço brasileiro porque nasceu francesa, foi holandesa e tem traçado portuguêserguida para os brancos, pelas mãos de negros e índios.
.Essa ilha é a chave de todo o país., ensinou o frei capuchinho Claude d. Abbeville, um dos 500 integrantes da missão francesa que, em oito de setembro de 1612, fundou ali a França Equinocial. D. Abbeville é autor da única e preciosa descrição da Saint Louis primitiva, tão diferente da que hoje aparece nas janelas de dona Vitória.
Os relatos destes dois temposo de d. Abbeville com seu éden inicial que prometia futuro e o da São Luís moderna que exala passado estão no 13º capítulo da série mensal. 500 anos, redescobrindo o Brasil., que o Correio Braziliense publica desde janeiro de 1998.
A equipe do Correio passou sete dias no mundo de dona Vitória e de outros anônimos que fazem, dali, lugar único onde se come cachorro-quente de carne moída, se bebe o refrigerante rosa Guaraná Jesus e se mistura tudo à amarela farinha d. água.


A cidade
Em primeiro lugar cabe observar que essas aldeias não são como as nossas, e menos ainda se parecem com cidades bem edificadas, cercadas de baluartes ou trincheiras, ou ainda de fossos, com ricos palácios, belas residências e castelos inexpugnáveis. Suas aldeias, a que chamam de Tabapovoação, o lugar onde pousam muitosnão passam de quatro cabanas. As quatro casas formam uma aldeia; entre maiores e menores existem vinte e sete em toda a Ilha do Maranhão.. .
A única capital brasileira que nasceu francesa não guarda vestígio algum dos tempos da França Equinocial. Da época, restou-lhe apenas o nome, São Luís, homenagem ao rei-menino francês.
As cabanas citadas por D. Abbeville viraram 3.500 edificações de valor histórico no centro da cidade, na região que os índios chamavam de Upaon-Uçu. No lugar do Forte Sain Louis, erguido em 1613 pelos homens do comandante Daniel de La Touche, o senhor de La Ravardiére, está o Palácio dos Leões.
É um prédio em estilo neoclássico que abriga a sede do governo estadual, nas mãos pela segunda vez consecutiva da governadora Roseana Sarney.
Roseana mandou esvaziar o Palácio para reformá-lo integralmente, mas a obra está parada há um ano por falta de dinheiro. As placas, esquecidas entre os andaimes, mostram que o prédio passou por sete grandes reformas nos últimos 100 anos, sendo que quatro delas foram feitas a partir de 1973.
Tampouco há restos da primeira igreja. Feita de taipa de pilão e coberta com folhas de babuçu, a capela foi construída pelos índios junto com os três frades capuchinhos que acompanhavam a missão francesa.
Os religiosos abençoavam a rebeldia da rainha Maria de Médicis, a soberana que autorizou a construção da colônia francesa no Brasil. Desobedeceu aos mandamentos do Tratado de Tordesilhaso compêndio de leis que dividia o Novo Mundo entre portugueses e espanhóis.
Os franceses precisavam ter um braço na América. Primeiro tentaram ocupar o Rio de Janeiro em 1555. Montaram a França Equinocial, mas logo fracassaram. Ao tentar repetir o modelo no norte do Brasil, escolheram se aliar aos índios, ao invés de escravizá-los como faziam os portugueses. A idéia mereceu um artigo na Constituição da França Equinocial, lida durante a cerimônia de fundação de São Luís, num arremedo de praça, hoje avenida Pedro II. Seriam condenados à morte os colonos que maltratassem ou roubassem os nativos.
.Os franceses sabiam que os índios eram essenciais ao seu projeto de colonização. Seriam os aliados contra os portugueses., explica o historiador Carlos Lima, um dos mais respeitados do Maranhão.
Foi curta a temporada equatorial dos súditos de Maria de Médicis. Em 1614, os portugueses expulsaram os inimigos e ocuparam a região. A Saint Louis francesa ganhou então a fisionomia lusitana que até hoje não perdeu.
Não é para menos. A. ilha.(é assim que os maranhenses falam) foi a primeira cidade planejada do Brasil. Quando os portugueses resolveram povoar a cidade, levaram colonos açorianos e encomendaram uma planta urbanística ao engenheiro-mor Francisco Frias de Mesquita.
Ele fez um plano renascentista, de ruas pequenas, com malha urbana ortogonal, obedecendo aos pontos cardeais.. São Luís é a avó de Brasília., brinca Luiz Phelippe de Carvalho Andrés, coordenador do patrimônio cultural do Maranhão.
As ruas
.Depara-se com charcos e areias movediças, nas quais a gente afunda até a cintura e mesmo até a cabeça e das quais, uma vez atolado, não há força nenhuma capaz de safar o sujeito. E acontece ainda que duas vezes por dia, cobre a maré esses pântanos e areias movediças e passa por cima das raízes erguidas além da superfície da terra, em muitos lugares à guisa de altas muralhas..
Aquilo que era charco virou rua calçada com pedras de granito, carregadas por escravos e presos, os calcetas. A Ilha de São Luís, cercada de mangues e marés, foi aterrada várias vezes nos últimos três séculos, o que facilitou o arruamento.
É uma história para cada rua. O passado aparece congelado nas placas de ladrilhos penduradas nas esquinas. Há o beco da bosta, onde os escravos passavam carregando nas costas tonéis cheios de excrementos recolhidos dos urinóis de porcelana de seus brancos patrões. Jogavam o conteúdo no mar.
E a Praça da Alegria, ex-Praça da Forca Velha, onde rebeldes perdiam a vida enforcados. O mais ilustre deles foi Manuel Beckmann, nascido em Lisboa, filho de pai alemão. Liderou o movimento que cem anos antes da Inconfidência Mineira condenava o excesso de impostos e pregava a liberdade comercial.
Existe o Beco Catarina Mina. Morava ali a bela negra Catarina Rosa de Jesus Ferreira. Ciente da beleza que Deus lhe deu, teve amantes, economizou fortuna e comprou sua liberdade. Alforriou a mãe, adquiriu imóveis e, esquecida do passado, comprou suas próprias escravas. A elas dava as melhores roupas e jóias, mas não permitia que usassem sapatos. Desfilavam descalças ao lado da ama Catarina sobre os paralelepípedos que hoje levam seu nome.
Não faltam também ruas que são largos. É o caso do Largo do Ribeirão, onde está a fonte do mesmo nome. Antes, era ali que os escravos pegavam água.
.Usamos essa água para lavar carros. O movimento é fraco, ninguém quer mais saber de carro limpo., reclama Francisco Ribamar Moreira, 47 anos, lavador de carro há duas décadas na Fonte do Ribeirão.
Além das ruelas que carregam a História no nome, há outras que fazem de São Luís um labirinto de poesia: rua do sol, da inveja, dos afogados, da paz, do giz, do alecrim, das flores, da manga, dos prazeres, do deserto...
As avenidas são poucas, mas também têm mérito histórico: seus nomes revelam a mistura dos povos que fizeram a cidade. Vale para a avenida dos portugueses, a dos africanos e a dos holandeses.
Os batavos ocuparam São Luís em 1641, ficaram três anos e deixaram precioso retrato da cidade: uma vista geral pintada pelo pincel do genial artista Frans Post.
Já nas tintas de Post, se percebe uma São Luís crescida sob a ordem lusitana. Em 1643, havia 600 casas, a maioria cobertas de palha. Exceção para a casa do governador, o prédio da Câmara com o andar térreo da cadeia, três conventos e o Colégio dos Jesuítas. Todos feitos de alvenaria.
.O feitio das casas de São Luís também conta sobre a vida daqui., resume Zelinda Machado, estudiosa dos costumes maranhenses.
n Os trechos entre aspas são do livro. História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas., de Claude D. Abbeville.
As casas
.São feitas de paus grossos ou estacas e cobertas de cima a baixo com folhas da palmeira Pindó, encontrável em grande abundância nas matas. Essas folhas, bem dispostas, resistem maravilhosamente à chuva. As casas têm de vinte e seis a trinta pés de largura e duzentos a quinhentos pés de comprimento, segundo o número de pessoas que nela habitam. São construídas em forma de claustro, ou melhor, em quadrado como a Place Royale, de Paris, de modo que há sempre entre elas uma praça grande e bonita..
O claustro indígena virou sobrado português. Na esquina do beco do Quebra Costa com a praça João Lisboa, um prédio de três andares com a placa. Hotel Ribamar.(Ribamar é o mais comum dos nomes no Maranhão) revela que o concreto conta história.
O hotel Ribamar era casa dos Belford, família rica metida em pecuária e lavoura no século XVIII, época de ouro para São Luís. Em 1756, Lourenço Belford mandou erguer o sobrado, com fachada coberta de azulejos verdes e janelas de madeira.
Logo, recebeu o título de solarchamavam-se assim os sobrados nobres, com mais de dois andares.. Era uma aventura de engenharia construir prédios de até três andares em pleno século XVIII., explica o historiador Mário Meirelles, professor da Universidade Federal do Maranhão.
No século XIX, a morada dos Belford passou para o Barão de Coroatá, que logo o vendeu ao jornalista Vitor Lobato. Virou, então, redação do jornal Maranhense. A Pacotilha..
Agora é hotel de janelas trêmulas, muito sujo, com diária de R$ 6,00. Quase um cortiço com moradores fixos como Eliane, que divide com o marido um pequeno quarto. O prédio pertencen ao alemão Hans Peter.. Ele morre de ciúmes do hotelio. É histórico., diz Eliane Batosta, sem saber que oRibamar. é tombado pelo Instituto de Patrimônio Histórico Nacional, o IPHAN.
Longe do Pacotilha, outro sobrado é rico em passado. Na rua do Giz, número 445, bairro do Desterro, as ruínas são do tempo em que a região era animada pelos cabarés.
.Aqui funcionava o Cabaré da dona Maroca. Tinha orquestra, mulheres de saia balão com sapatos Luis XV e homens de terno. Era dos melhores cabarés de São Luís., lembra Manoel Mota, ex-cozinheiro da Maroca. Chegou ali em 1951 e logo ganhou o emprego.. E muitas namoradas. As moças eram mais bonitas, vinham de todo o Brasil., conta Manoel, que hoje divide com os gatos as ruínas do Maroca.
A festa não é mais no Desterro. Os bordéis viraram edifícios esquecidos. O único que resiste é o de Cândido.. Mas é para homens., diz Cândido na porta de sua casa, uma. morada-inteira.. são as residências térreas com uma porta e duas janelas de cada lado. Há a meia-moradaduas janelas e uma porta.
.Comecei de baixo, morando numa porta-e-janela., conta Cândido, dentro de seu enfeitado cabaré, cheio de clientes. A porta-e-janela é a mais humilde das construções. Essas diferenças continuam por dentro das casas, nas mobílias e na disposição dos cômodos.
A mobília
.Os móveis caseiros são as redes de algodão a que chamam ini. Cada um tem sua rede. Os índios têm cabaças que chamam euá e de que se servem para ir buscar água; e têm outras, cortadas pelo meio pintadas de vermelho e preto, que denominam cui, cuias, e que lhes servem de prato e de copos para beber; usam as menores à guisa de colheres. Têm cestos a que chamam uru. São feitos de folhas de palmeiras ou de pequenos juncos lindamente tecidos. Neles guardam seus pentes, suas facas, suas tesouras e suas miçangas. Esse é o lar dos maranhenses e nisso consiste tudo que ambicionam..
Dos móveis indígenas, restam as redes. Persistem até nas moradas elegantes, como a de dona Terezinha Jansen, bisneta da mitológica Ana Jansen, política do século XIX que morreu com a fama de ser a maior e mais cruel escravocrata maranhense.
Por dentro, a casa de dona Terezinha é o retrato de como a elite vivia no Maranhão de antigamente. Na entrada, está a sala de visitas.. Até o século XIX, os homens recebiam as visitas de ceroulas, as donas de casa passavam os dias de roupa-íntima, camisolão., conta o historiador Carlos Lima.
Ao lado da sala, fica a alcovaaté hoje chamam-se assim os quartos de casal. Têm penteadeira francesa e armário.. Antigamente havia também o trono no quarto. Era uma cadeira com tampa para cobrir o penico. De manhã, os criados tiravam o urinol. Não havia banheiro dentro de casa. Tomava-se banho nas casas de banho do lado de fora., explica o historiador.
As paredes da alcova de dona Terezinha têm até hoje o pendurador de rede, posto ali por seu avô ainda no século passado. Curioso é que o quarto dali, como o de toda casa rica de São Luís, dá para a sala íntima, mas não tem portas. Não havia portas dentro de casa.. Só biombos., conta a religiosa Terezinha.
Na sua casa tem varanda, mas não a que se conhece no sul: é interna e dá para o quintal. Perto, no corredor interno, ficava o bilheiro. Móvel para potes e bilhas, onde se guardava água em moringas.
Nas pobres porta-e-janela o mobiliário era diferente. Ao invés de cadeiras, bancos. Nas alcovas, nada de biombos. No lugar das caras cristaleiras, se colocava um rústico petisqueiro, armário envidraçado na frente e telado dos lados. Guardava louça e guloseimas. E, no Maranhão, guloseimas, merecem um capítulo a parte.
A comida
.É porque a doçura do ar tempera no Brasil as águas dos mares e dos rios, que aí pululam os peixes e todos diferentes dos que temos por aqui. A única espécie igual às nossas é a dos sargos. Há também muitas ostras, a que chamam reri, semelhantes às nossas, porém do dobro do tamanho e muito mais deliciosas... Há sapos enormes a que chamam cururu. Sua carne é incrivelmente branca e de bom paladar. Vi muitos fidalgos franceses comerem-na com grande apetite. Colhe-se também o algodão e a pimenta. O alimento habitual não é o pão, porém a farinha feita de raízes de mandioca, ralada num crivo de madeira, repleto de dentes de pedra ou de ossos de peixe muito aguçados..
O mar continua generoso com os maranhenses. E, graças aos capuchinhos modernos, o pobre agora tem pão. Toda quinta-feira, acontece a cerimônia do Pão de São Francisco na Igreja do Carmo, ocupada pela ordem dos capuchinhosestes italianos e não franceses como os do início de São Luís.
.Minha branca, me ajude., suplica, na escadaria da igreja, a negra Conceição Diniz. Mostra, sem perceber, que os maranhenses ainda não esqueceram as diferenças de cor.. Preto e branco são iguais. Só que branco tem dinheiro e preto não., resume Pedro Silva, outro pedinte do Carmo que jamais falta aos rituais do Pão de São Francisco.
.Os capuchinhos são franciscanos. Sempre estiveram ligados aos pobres, aos que têm fome., explica o frei Liberato Giuduci, o capuchinho que organiza o Pão de São Francisco, além de dois almoços populares por semana. É italiano e está há quatro décadas no Maranhão. Vive suando, mas jamais tira a batina marrom, a barba comprida e o capuz.. São símbolos de despreendimento com a vaidade..
Comida dos santos, mas também dos pecadores. Em frente à Igreja do Carmo, uma banquinha vive cheia de gente ansiosa para tomar Guaraná em pó misturado com ovo de codorna, castanha de caju e amendoim. Junto comem açaí (no Maranhão fala-se Jussara) com camarão seco e misturado com farinha d. água.
.Nossa comida é para levantar defunto., diz Antonio Sampaio, vendedor do mercado das Tulhas, na Praia Grande, antigo centro comercial de São Luís. Se vendia de tiquira (cachaça) a escravos.. Hoje, só não temos mais escravos., brinca ao lado dos cofos de palha, depósitos dos vários tipos de camarão.
A cidade que no século XVII assistiu na Capela dos Navegantes o libertário padre Antonio Vieira, famoso por defender os índios, pregar o Sermão dos Peixes, não perdeu a fé. Há religiosidade nos mínimos detalhes. Em cada esquina, há um poste conhecido como. frade de pedra..
E, até nas festas populares, como o Boi e o Divino Espírito Santo, Jesus Cristo jamais é esquecido.. Em São Luís, os pecados são santos., brinca Maria Ferreira, 38 anos, freqüentadora assídua do terreiro Casa da Mina e da Igreja da Sé.





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